sábado, 6 de julho de 2013

Coração Ferido

Morei toda a minha infância no subúrbio, ir ao centro era um evento. A maioria das vezes só passava pelos lugares mais famosos, era sempre muito para se fazer, pouco tempo para dar voltinhas.
Um dia, não me lembro que idade eu tinha, fui levada pelo meu pai em uma sorveteria que ele ia quando criança. Era dentro do Mercado Público. Não gostava muito daquele lugar, era cheiro de peixe por todos os lados, gente por todos os lados. Deveria ter algum tipo de portal na entrada da sorveteria, comi um sorvete com nata (na ocasião achei estranho aquele sorvete que não era gelado, embora fosse delicioso) em um pratinho saído de algum lugar do passado, acompanhado por um pequeno copo d'água.
Demorei muitos anos até voltar ao Mercado. Nesse meio tempo, ele foi reformado, modernizado. Quando comecei a faculdade era ali ao lado que pegava o segundo ônibus da jornada, certo dia resolvi entrar e procurar a tal sorveteria.
Já não havia mais tanto cheiro de peixe, no corredor central havia uma fila aromática das mais diversas ervas, penduradas em bancas em que não se via a estrutura, tamanha era a fartura de artigos, comandadas por homens sempre dispostos a elevar a autoestima de quem por ali passava. Ao centro, uma segunda Esquina Democrática, um quadrilátero de queijos, presuntos e todos os outros fiambres existentes, embalados com o mesmo papel pardo e cordão de tantos tempos atrás.
A sorveteria seguia lá, com as mesmas taças, delícias e copinhos d'água. Pretos-velhos, erva-mate, vinhos, chocolates, utensílios, patuás, produtos naturebas de toda ordem, doces, salgados, frutas, flores, peixes, cafés - ah, o café...!
Não achou em nenhum lugar? Deve ter no Mercado!
Ah, mas isso tu não acha em nenhuma outra loja, só tem no Mercado...
É o coração da cidade, feito de tantos corações. Já anteriormente ferido, maltratado, revitalizado, que novamente tem suas coronárias testadas. Mas ele é forte, pois é feito de povo e de muito amor.

Originalidades felinas

Funciona mais ou menos assim: não importa o que você pensou, planejou, o quão pertinente ou necessário seria, a decisão final é deles. Filhos? Não. Gatos.
Casais sem filhos tomam a equivocada decisão de adotar um cão (depois de fracassarem com o vasinho de violeta) para testar seus talentos como pais. Pois deveriam adotar um gato! Filhos não obedecem, nem sempre são tão companheiros e não serão todos os dias que "abanarão o rabo" quando você chegar. Não falo isso com ressentimentos - tanto em relação aos filhos, quanto aos gatos -, só seria válido um treino mais real.
Pois voltando aos felinos, é uma versão piorada das crianças. Sabe quando você compra um brinquedo, e a pessoinha pega a caixa? Eles sempre pegam a caixa, não importa se o brinquedo era deles, se o sapato era seu ou se o leite era da família.
Caminha para dormir? Esquece. Todo ou qualquer lugar ao sol, seja sobre a mesa, sobre o pano de prato branco (este está no Top Ten), na frestinha da janela ou no meio de qualquer duas pessoas que se amam; se não for no meio não tem graça. Caverna de edredon, travesseiro, roupa do dono - principalmente sendo o oposto da cor dominante do bichano. Vale também toda e qualquer parafernália elétrica que produza algum calor.
Madame Nora, insatisfeita com a tecnologia que encolheu televisores e monitores aqui de casa, resolveu pousar seu corpanzil negro por sobre o roteador, o minúsculo roteador. O apreço pelo computador, aliás, é tremendo, pois nada mais divertido que parar em frente a tela (em uso) ou entre o teclado e o digitador.
E ali está ela, parada qual e tal um totem informático, rabo para um lado, antena para o outro, diferenciada somente pelas luzinhas verdes que piscam sob o seu traseiro. Pode passar horas ali, negando ofertas sinceras de colo, afinal, as coisas são quando e como ela quer. Mas o que mais autêntico e cativante que uma criatura cheia de personalidade?